
ㅤㅤEm um momento histórico em que a tecnologia ganha primazia com a inteligência artificial, a razão, os fundamentos técnicos e frios de uma existência explicada pela lógica não são suficientes para preservar na nossa sociedade aquilo que nos faz humanos. Nesse cenário, o simbólico, o misterioso e o inexplicável da fé parece ser um importante elo que nos mantém humanos e vivendo em comunidade.
ㅤㅤEra mais uma noite de sessão na Câmara Municipal de Aguaí. Como em um disco riscado, repetia-se o ritual: vereadores propondo lombadas. Toda semana surge uma nova indicação para instalar redutores de velocidade em alguma rua da cidade, como se a salvação do dos seus problemas estivesse em transformar as ruas em trilhas de rali. A persistência beira o cômico — não fosse trágico o fato de que, enquanto isso, problemas reais do município ficam em segundo plano. As sinalizações horizontais, por exemplo, seguem sem reforços, e os buracos no asfalto acumulam mal reparo. Entretanto, nada disso parece ter o mesmo apelo dos montinhos de piche pretendidos pelos nossos diligentes legisladores municipais. A cidade, se atendesse a todas essas vontades, logo viraria um verdadeiro circuito de obstáculos, um labirinto de lombadas a cada quarteirão, testando a paciência (e a suspensão) de todos que por ali passam.
ㅤㅤEnquanto Aguaí flerta em exagero com obstáculos de concreto e asfalto, em Brasília repete-se outro enredo de insistência cega. O presidente Lula, sem concretizar promessas de campanha como a isenção de imposto de renda até R$ 5.000 ou acolher como pauta o fim da jornada 6x1, pressiona o Ibama a liberar a exploração de petróleo na foz do Amazonas, como se ali estivesse a lâmpada de Aladim capaz de realizar todos os desejos econômicos do país no que diz respeito ao mercado e seus anseios a curto prazo. Recentemente, Lula demonstrou impaciência com a demora do órgão ambiental — chegou a reclamar do “lenga-lenga” do processo e a dizer que o Ibama, por não aprovar logo a perfuração, parece um órgão contra o governo.
ㅤㅤA imagem é curiosa: para o presidente, o guardião ambiental tornou-se uma pedra (ou seria uma lombada?) no caminho de seu projeto petrolífero — quando iniciou o governo abraçando intensamente a pauta ambiental com Marina Silva a tira colo. Por trás da metáfora, há o risco bem concreto de atropelar precauções importantes. Técnicos do Ibama alertam que a Petrobras ainda não cumpriu exigências básicas de segurança ambiental, como planos de contenção em caso de vazamento — um acidente assim seria catastrófico para o bioma amazônico. Ignorar esses alertas em nome da pressa é criar um obstáculo futuro bem mais sério: devastação ambiental irreversível, que não se resolve com remendos fáceis.
ㅤㅤNos dois casos — lombadas demais em Aguaí e pressa demais pelo petróleo amazônico — o que se vê é a falta de planejamento e a aposta preguiçosa em soluções simplórias. Nossos vereadores parecem acreditar que todo problema de trânsito se resolve com uma lombada pintada no chão. Já o governo federal age como se o futuro energético do Brasil se resumisse a furar mais poços de petróleo na primeira oportunidade. Ambos os raciocínios ignoram alternativas e consequências. Nas ruas, há outras formas de melhorar a segurança: sinalização, educação no trânsito, passarelas, fiscalização. No setor energético, há caminhos sustentáveis a considerar, da energia renovável à conservação ambiental que evita tragédias climáticas. Mas essas opções exigem estudo, trabalho de base e visão de longo prazo – tudo aquilo que a política do atalho raramente enxerga.
ㅤㅤChama atenção também o apego obstinado a essas medidas mesmo quando elas claramente emperram o andamento da vida pública. Em Aguaí, proliferam pedidos de lombada enquanto falta olhar para o conjunto da mobilidade urbana. Vale lembrar que normas federais exigem critério técnico: lombada só pode ser instalada após estudo de engenharia e quando outras alternativas falham. Ou seja, a lombada deveria ser último recurso, não fetiche semanal. Da mesma forma, na questão do petróleo, existe o Ibama justamente para funcionar como barreira de proteção contra decisões impulsivas — um filtro técnico que assegure que só se avance quando houver garantias de minimizar danos. Em vez de respeitar esse papel, o que se vê é a tentativa de contorná-lo, empurrando goela abaixo um projeto potencialmente danoso sem a devida cautela. É o famoso jeitinho brasileiro que me dói ver no plano federal.
ㅤㅤEssa repetição de pautas revela um problema maior na nossa política: a predileção por soluções fáceis, repetitivas e de efeito duvidoso, adotadas sem pensar nos impactos de longo prazo. A cada lombada proposta sem critério, cria-se um desconforto novo (e não se resolvem as causas de acidentes e excesso de velocidade). A cada pressão por petróleo sem estudos completos, flerta-se com um desastre ambiental e adia-se a busca por um modelo energético realmente sustentável. É como se gestores e líderes estivessem presos em um ciclo de curto-prazismo, medindo sucesso pelo instantâneo — “coloquei uma lombada!”, “autorizei um poço!” — enquanto as consequências se acumulam adiante, feito armadilhas escondidas na estrada.
ㅤㅤNo fim das contas, seja em Aguaí ou na imensidão amazônica, tropeçamos na mesma falha: preferir o remendo imediato ao invés da solução planejada. A ironia é que, ao tentar resolver tudo no atropelo, acabam plantando novos obstáculos para toda a sociedade. A cidade das lombadas ficaria lenta, engessada; a Amazônia do petróleo fácil pode acabar poluída, empobrecida a longo prazo. Falta-nos vislumbrar que bom senso e planejamento não são inimigos do progresso – ao contrário, são o caminho para um progresso que não precise depois frear bruscamente diante dos estragos. Enquanto persistirmos nesse hábito de repetir erros com excesso de confiança, continuaremos transformando o país num grande circuito de obstáculos criados por nós mesmos, onde cada solução apressada vira, ela própria, um novo problema a enfrentar.
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